Violência histórica contra o povo Xetá foi tema de Audiência Pública realizada na Assembleia

As perspectivas de futuro dos Xetá, etnia dos povos originários que está desaparecendo do Paraná, foi tema de uma audiência pública realizada na noite desta terça-feira (9), na Assembleia Legislativa do Paraná. O caso dos Xetá já foi reconhecido como genocídio pela Comissão da Verdade Nacional e a Comissão Estadual da Verdade do Paraná, que se dedicaram a investigar o que aconteceu com os indígenas brasileiros, e encontraram relatos de assassinatos por tiros, envenenamento e sequestro de crianças em pleno Século XX.

“Meu povo é um povo sofrido, foram separados”, afirmou o cacique Júlio Cezar da Silva, da aldeia indígena São Jerônimo, localizada no município de São Jerônimo da Serra, no Norte do Paraná. Descendente dos Xetá, hoje é professor na comunidade e luta para “dar visibilidade ao nosso povo” e garantir a demarcação da terra indígena. O cacique é filho de Tikuein, um índio Xetá, que ficou conhecido como “o homem que falava com o espelho”, contou Júlio Cezar. Quando foi resgatado da mata, ninguém da aldeia falava Xetá: só Guarani e Kaingang. Então, Tikuein não tinha mais com quem trocar ideias no seu próprio idioma. Conversar com o espelho foi a estratégia que encontrou para ativar a memória e manter a língua viva. Na língua deles, “bom dia” é “Entxeiwi”, saudação com que, diariamente, Tikuein iniciava uma longa conversa com o espelho.

“É uma noite histórica para o nosso povo”, garantiu Indioara Luiz Paraná Xetá, liderança da aldeia Kakané Porã, que, igualmente, lamentou o extermínio do seu povo. “Meu pai, meu tio, eles morreram com o desejo de reunir todos, para preservar a nossa cultura. Nós estamos aqui lutando para preservar a nossa cultura e ensinar a importância de ser Xetá”, frisou. “Por culpa do ‘não índio’ não consegui conhecer e conviver com minha família”, disse ela, num depoimento emocionado. Na opinião de Indioara, se não tivesse sido permitido pelos governos o genocídio do seu povo, hoje não haveria necessidade de pedir essa reparação histórica. “Estamos lutando pelo que é nosso, por nossa terra”, acrescentou.

O deputado Renato Freitas (PT), presidente da Comissão de Igualdade Racial, que promoveu a reunião intitulada “Garantia de vida e território dos povos originários Xetá”, que lotou o Auditório Legislativo e contou com a presença de lideranças e autoridades, destacou a importância de coibir as desigualdades e de buscar soluções para essa população. Ele lembrou que o povo Xetá, reconhecido como o último grupo indígena a ter contato com a invasão colonizadora no sul do território brasileiro, possui uma história marcada por resistência e resiliência frente a episódios de violência e expropriação de suas terras ancestrais. O parlamentar considera fundamental o mapeamento e a reivindicação territorial originária para a etnia, bem como, a preservação da cultura indígena. Originalmente, a terra Xetá está localizada na Serra dos Dourados (PR)

“O povo Xetá nunca foi reparado”, afirmou o pesquisador Rafael Alexandre Pacheco, do Centro de Estudos Ameríndios e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade de São Paulo (USP). Em seu pronunciamento Pacheco abordou uma série de atos dos governos que provocaram o esbulho das terras Xetá, iniciando com o Acordo de 1949. Ele disse que sua intervenção era feita com a disposição de contribuir com o debate e com soluções para essa situação da comunidade Xetá. Doutor em Geografia, Eliel Benites, diretor do Departamento de Línguas e Memórias Indígenas, do Ministério dos Povos Indígenas, definiu como positivo o debate para o fortalecimento das políticas públicas. Os Xetá foram a última etnia do estado do Paraná a entrar em contato com os colonizadores. Na década de 40, frentes de colonização invadiram seu território, reduzindo-o drasticamente. No final dos anos 50, estavam praticamente exterminados. Hoje, vivem dispersos nos estados do Paraná, Santa Catarina e São Paulo.

Conselho – “Temos que analisar o volume de pessoas que formam essa etnia”, disse o presidente do Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Paraná, Mauro Rockenbach, assessor especial do governador Carlos Massa Ratinho Júnior, que falou sobre a importância da luta do povo indígena para alcançar seus direitos e da disposição do Governo em estimular a participação das lideranças nas decisões. A criação do Conselho, pleiteado há quase 20 anos, foi aprovada pela Assembleia Legislativa e implementado pelo Governo do Estado no ano passado.  Também para o antropólogo e indigenista Felipe Kamaroski, coordenador das políticas dos povos e comunidades tradicionais da Secretária da Mulher, Igualdade Racial e Pessoa Idosa, há uma grande disposição do Governo do Estado em desenvolver políticas públicas, elaboradas em conjunto com os povos originários. Ele enfatizou a importância da criação do Conselho Estadual para o encaminhamento dos direitos dos povos originários. A proposta do conselho é formular a política estadual para povos indígenas, para incentivar a continuidade e a revitalização cultural dessas comunidades, como está previsto na Constituição Federal.

O marco temporal foi tema tratado pelo advogado Marco Alexandre Souza Serra, da Associação Indígena da Etnia Xetá (AIEX), professor da Faculdade de Maringá e pesquisador do Observatório das Metrópoles da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Marco temporal (Lei 14.701, de 2023) é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. De acordo com o marco temporal, para que uma área seja considerada “terra indígena tradicionalmente ocupada”, será preciso comprovar que, em 5 de outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição), ela já era habitada pela comunidade indígena em caráter permanente e utilizada para atividades produtivas, ou já era disputada pela comunidade. Ele abordou a decisão proferida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, no âmbito da Ação Cível Originária (ACO) 3.555, determinando o encaminhamento dos autos para conciliação, na tentativa de uma solução pacífica para região, face o agravamento dos conflitos com os últimos atentados ocorridos. Na ACO as comunidades indígenas Avá-Guarani, do Oeste do Paraná, narram que ataques recentes de violência agravaram a situação de vulnerabilidade e a insegurança alimentar dos indígenas e que decisões judiciais suspenderam o próprio processo de demarcação sem a participação ou intimação das comunidades. Entretanto, no último dia 5 de abril, os ministros do STF reverteram a liminar do ministro Fachin e decidiram acionaram a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para buscar consenso sobre a questão.

Genocídio – Um documento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), publicado em fevereiro deste ano, registra o seguinte: “falantes de uma língua do tronco Tupi-Guarani, os Xetá foram praticamente dizimados – restando, até onde se sabe, apenas oito crianças do povo –, em decorrência do avanço da frente cafeeira sobre o seu território, entre as décadas de 1940 e 1960. Esse caso foi, inclusive, reconhecido como genocídio pelos relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão Estadual da Verdade do Paraná. Na ocasião, indígenas do povo foram mortos, transferidos de maneira forçada para outros locais e submetidos a lesões graves à integridade física e mental – incluindo crianças. Tudo isso com a conivência e apoio do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)”, frisa a publicação.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado ainda em 2014, chamava a atenção para a situação dos Xetá. Foi inseriu no volume II, assinado por Maria Rita Kehl, o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas”. O documento apresenta, ao longo de 60 páginas, um número limitado de casos de violações de direitos contra povos indígenas, entre eles: o esbulho dos territórios Ava-Guarani, Guarani Kaiowá, no noroeste do Paraná e no sul do Mato Grosso do Sul, respectivamente; a emissão de certidões negativas sobre os territórios dos Nambikwara (MT); os processos de desagregação social e extermínio dos Xetá (PR), Tapayuna (MT) e Avá-Canoeiro (TO); as mortandades causadas pela construção estradas e hidrelétricas entre os Panará (MT), Parakanã (PA), Akrãtikatejê (PA), Yanomami (RR) e Waimiri-Atroari (AM).

Quem são?  Primeiros habitantes do território brasileiros, os indígenas ocuparam o Brasil antes da chegada dos europeus. Por isso, são denominados hoje de povos originários. Foram os primeiros habitantes do país, com forma de organização social e cultura exclusivas ao seu grupo. Eles representam 0,4% da população total do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São mais de 300 povos, que falam mais de 270 línguas.

Dados do Censo de 2022, divulgados no ano passado pelo IBGE, apontam que a população indígena no estado do Paraná é de 30.460 pessoas. A pesquisa indicou que 13.887 (45,59% do total de indígenas) deles se encontram em terras indígenas, bem como 16.573 (54,41% do total de indígenas) residem foram de territórios tradicionais. Destaques para as comunidades de Rio das Cobras, na região Centro-Sul do Estado, a maior terra indígena paranaense e a 50ª maior do País, segundo o Censo, com 3.102 pessoas. A segunda maior é a Terra de Mangueirinha, no Sudoeste, com 1.994. Na sequência estão Ivaí, com 1.886 indígenas, Apucarana, com 1.636 pessoas, e Palmas, com 725.

O número total de indígenas representa 0,27% da população paranaense, que é de 11.443.208 habitantes. Dos 399 municípios paranaenses, 178 apresentaram aumento das suas populações indígenas, segundo o Censo de 2022. São 345 cidades com registro de ao menos um indígena autodeclarado – 86% do total. O Paraná tem a 14º maior população indígena do país e a segunda maior a região Sul, atrás de Rio Grande do Sul, com 36.096 pessoas (evolução de 6,1% em relação aos 34.001 de 2010), e à frente de Santa Catarina, que tem 21.541 indígenas (aumento de 18,2% em relação aos 18.213 de 2010).

A audiência pública aconteceu no período do Abril Indígena, movimento nacional de valorização, luta e visibilidade dos povos originários; e quando é celebrado o 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas. Desde 2022, essa tradicional data já mudou de nome, conforme, define a Lei federal 14.402/22. A alteração tem o objetivo de explicitar a diversidade das culturas dos povos originários.

Também participaram da audiência o procurador de Justiça, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, do Ministério Público do Paraná, que foi o coordenador da Comissão da Verdade do Estado; o indigenista e mestre em Antropologia Social, Mauro Leno, coordenador da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai, regional de Curitiba); e, por videoconferência, falaram o indigenista Paulo Porto, coordenador de programas de sustentabilidade da Itaipu Binacional; e o procurador Raphael Otávio Bueno dos Santos, do Ministério Público Federal (MPF). O procurador tratou dos andamentos das ações judiciais que envolvem a demarcação da Terra Indígena Herarekã Xetá, bem como as implicações do marco temporal.

Transmitida ao vivo pela TV Assembleia e redes sociais, a audiência pública pode ser assistida no canal oficial do YouTube da Assembleia, clicando no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=v030liYZ2vU