Projeto usa pedagogia cartonera para empoderar mulheres catadoras

Atividades giram em torno de oficinas cidadãs e produção de livros a partir do papelão, material presente no trabalho diário dessas mulheres

Aparecida de Souza traz no rosto as marcas de uma vida sofrida. Entra na sala de descanso para buscar algo para comer. Tem pressa. Precisa voltar à esteira onde faz a separação de lixo na Unidade de Valorização de Recicláveis (UVR), no Porto Meira. “Tem muito trabalho e pouca gente”, justifica. É preciso garantir um bom volume de material para venda e o trabalho de todos é importante para isso: as UVRs do município trabalham em regime de cooperativa. Em alguns dias, a jornada é exaustiva. Apesar do cansaço, Cidinha, como é carinhosamente chamada, é uma das mais ativas participantes das discussões conduzidas pelo projeto de extensão “Mulheres catadoras: pedagogia cartonera para o empoderamento”, desenvolvido pela UNILA em cinco das sete UVRs de Foz do Iguaçu.

O objetivo do projeto é o empoderamento das mulheres catadoras, buscando, através de diferentes atividades, gerar consciência sobre as desigualdades de gênero. Uma das primeiras ações desenvolvidas foi a realização de oficinas de formação cidadã nas UVR da cidade. Também houve formação para elas em temáticas sobre gênero, economia solidária, relações do trabalho, entre outros. Participam do projeto docentes, servidora técnico-administrativa e discentes da UNILA, que se dividem nas tarefas em cada UVR. As oficinas foram distribuídas ao longo de 2023 e, no ano que vem, as mulheres catadoras irão escrever suas histórias ou histórias que podem ou não ter relação com suas vidas e transformá-las em livros a partir de materiais com os quais trabalham.

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Oficina cidadã realizada na UVR do Porto Meira

A pedagogia dos livros cartoneros envolve a criação, editoração e produção de histórias de modo artesanal. As editoras cartoneras passaram a ganhar destaque na América Latina no início do século, com a produção de livros feitos com cartóns (papelão), comprados de cartoneros (catadores), e que trazem textos literários cedidos por autores. Hoje, os livros cartoneros têm vários enfoques, não só o de ampliar o acesso à literatura, mas também são usados para inspirar estudantes e transformar realidades.

“Quando iniciamos o projeto, pensamos que seria interessante que essas mulheres pudessem ver que podem transformar o material que reciclam em livro, em um instrumento de leitura”, comenta Jorgelina Tallei, coordenadora do projeto. O conteúdo das publicações vai nascer das experiências pessoais de cada uma dessas mulheres, após as discussões e rodas de conversa realizadas ao longo do ano. “É uma forma também de fazer com que elas sejam acolhidas por elas mesmas porque conheceram histórias a partir dos relatos que talvez não conhecessem no dia a dia do trabalho”, conta.

Com os livros cartoneros, Jorgelina espera também que a sociedade possa valorizar mais o trabalho e os trabalhadores da coleta seletiva. “[Espero que isso possa] conscientizar as pessoas de que se pode criar um livro a partir do material reciclável. Elas podem contar a sua própria história ou a história que quiserem e elas têm muito para falar, sim.”

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Cidinha (esq) e Everaldina (dir) em momento de escuta em uma das oficinas

Contar sua vida, dificuldades e alegrias, para essas mulheres, representou momentos de libertação. “Eu gostei de ouvir tudo e ajudou porque eu pensava demais na morte de minha filha. A conversa que elas trouxeram me ajudou um monte”, conta Cidinha. A filha foi morta pelo companheiro há quatro anos e ela quem cuida da neta de 9 anos. Ela e a neta serão as personagens principais do seu livro cartonero. “Nós duas, né?”, repete para que não restem dúvidas. As duas vivem com o dinheiro da reciclagem, trabalho de Cidinha já há 20 anos. Antes, na rua, empurrando o carrinho, enfrentando sol, chuva e frio, com pouca ou nenhuma proteção. Agora, tem o INSS pago, cesta básica e um salário que varia mês a mês, mas fica próximo de R$ 1.200.

“Elas podem contar a sua própria história ou a história que quiserem e elas têm muito para falar, sim. […] Isso as dignifica desde outro lugar que é o lugar da cultura ou da escrita”
Jorgelina Tallei

Para Everaldina Flores, que trabalha na cooperativa há um ano, a participação no projeto foi uma via de mão dupla. Assim como Cidinha, ela foi uma das mulheres que mais participou das reuniões e expôs suas ideias. “Elas [professoras e alunas da UNILA] ensinaram algumas coisas que a gente não sabia. E nós ensinamos algumas coisas que elas não sabiam. Uma troca, né?”, diz. O espaço de fala também foi libertador para Everaldina. “Elas perguntaram como era nossa vida, nossa rotina. Aí a gente foi falando, foi falando e teve coisas que eu falei que estavam aqui dentro, de pessoas que já se foram, e foi até um alívio”, revela. O empoderamento, lembra Jorgelina, também está “na compreensão de si mesmo”. “A gente [precisa] entender a nós mesmos primeiro para depois dizer ‘já passei por cima de tudo isso, vamos em frente’.”

Simpática e escondendo a timidez, Everaldina diz que a história de sua vida “dá um livro inteiro”, mas que ainda está pensando no que vai escrever. “Tem pedaço bom, têm pedaços médios e pedaços péssimos”, diz sem expressar tristeza, mas de forma calma, como quem já não olha tanto para trás.

“É preciso valorizar essas mulheres – de forma geral, todos os trabalhadores da reciclagem – que enfrentam ainda muito preconceito da sociedade”, comenta Renata Aparecida de Souza, administradora da UVR Geraldo Sálvio de Paula, no Porto Meira, onde Cidinha e Everaldina são cooperadas. “Eles ganharam autonomia, que ainda parece muito pouco para quem olha de fora, mas comparado à realidade de antigamente é uma conquista muito grande”, pondera. A UVR do Porto Meira, considerada uma unidade de pequeno porte, consegue destinar 30 toneladas de recicláveis por mês. No local, trabalham pouco mais de 20 pessoas. A maioria, mulheres.

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Conversa com mulheres catadoras da UVR Rosana Lemos Turmina, no Jardim Europa

Tempo escasso

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Exemplos de livros cartoneros

A pressa diária que acompanha Cidinha se estende a todas as trabalhadoras da UVR, que nem sempre conseguiram meia hora por mês para ouvir e falar. “Foi um pouco difícil, porque a gente chegou aqui e mesmo que você estude e conheça a realidade, você não forma parte da realidade”, reflete Jorgelina. Para reduzir essa dificuldade, o incentivo de Renata foi relevante. “Disse a elas que aprender outras coisas também é importante”, diz, mas acompanha o raciocínio de Jorgelina. “Por mais que a gente conheça essas mulheres, não vivemos o que elas viveram.”

A realidade encontrada nesta UVR fez com que o planejamento das ações fosse alterado. “A gente percebeu que não pode chegar aqui impondo, mas que também tem que ter coisas que elas querem. Elas não têm esse tempo. Elas param o trabalho. Isso é muito difícil. Mas, mesmo assim, elas sempre participaram, de uma forma ou outra, sempre estiveram presentes”, destaca Jorgelina.

O projeto, que é financiado pela Fundação Araucária, está pensado para ir além da produção dos livros cartoneros pelos grupos de mulheres das cinco UVRs da cidade. “A ideia é poder criar, talvez, uma editora cartonera que empodere essas mulheres ainda mais e que possa garantir uma pequena geração de renda. Imagine elas, por exemplo, expondo na feirinha da JK ou na Feira do Livro. Isso as dignifica desde outro lugar que é o lugar da cultura ou da escrita.”

Jorgelina (ao centro) com as catadoras: troca de saberes