Lideradas por mulheres, pesquisas acadêmicas vêm assumindo um papel crucial na ampliação da representatividade e na divulgação das contribuições femininas em diversas áreas
A produção científica resultante de pesquisas sobre a condição feminina e as desigualdades de gênero é crescente no Brasil, apesar das muitas dificuldades que as mulheres ainda enfrentam no ambiente acadêmico, aponta Cleusa Gomes, docente da UNILA e coordenadora do Observatório de Diversidade na América Latina – Caribe e do Monitoramento da Violência de Gênero na Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina).
Segundo ela, estudo realizado por Natascha Hoppen (UFRGS), em seu doutorado, mostra que, nas décadas de 1960 e 1970, o número de artigos publicados sobre mulheres e gênero era de 10 por ano, mas em 2018 esse número chegou a 3.864 artigos. Natascha analisou 31.609 artigos de autores brasileiros publicados entre 1959 e 2019. “Mostra uma trajetória maravilhosa, vigorosa”, comenta Cleusa.
Esse trabalho mostrou, aponta a docente, que o tema ganhou fôlego na década de 1990, com artigos na área de ciências da saúde. A partir daí, também nas ciências humanas e sociais. O estudo também aponta como causa desse interesse crescente o surgimento de dois periódicos acadêmicos, a Revista Estudos Feministas, vinculada ao Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e os Cadernos Pagu, periódico ligado ao Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Cleusa, que também é pós-doutoranda em História das Mulheres e Gênero na América Latina (USP), destaca que a produção sobre esses temas não pode ser dissociada dos dados que mostram a também crescente participação das mulheres na ciência. Segundo ela, hoje as mulheres são cerca de 54% dos estudantes de doutorado no Brasil. “Um aumento impressionante de 10% nas últimas duas décadas. Isso representa muito, dados todos os limites para a entrada das mulheres no ambiente acadêmico e científico.” Esse número, comenta, é semelhante ao de países como os Estados Unidos, onde, em 2017, as mulheres conseguiram 53% dos diplomas de doutorado.
Os campos em que as mulheres pesquisadoras mantêm vantagem sobre os homens, no entanto, nem sempre se revertem em maior visibilidade ou reconhecimento. Outro dado apresentado pela docente mostra que as cientistas são responsáveis por quase 70% dos artigos publicados no Brasil. “Este é um dos maiores índices do mundo e, apesar disso, as mulheres são menos citadas, mesmo quando se trata de outras temáticas que não a de gênero.” Os homens, completa, também são “mais bem representados entre os autores com uma longa história de publicação”, enquanto as mulheres são “altamente representadas entre os autores com uma curta história de publicação”.
As pesquisadoras ficam em desvantagem, ainda, quando se trata da bolsa de produtividade, lembra Cleusa. “As pesquisadoras têm maior número de publicações e, ainda assim, apenas 24% das mulheres recebem bolsa de produtividade. Nós temos grandes desafios para incluir de forma plena e igualitária as mulheres dentro dos ambientes específicos, dentro da academia, dentro da produção científica, dentro da produtividade.” Os fatores que levam a isso, diz Cleusa, são “os mesmos que levam à questão dos baixos salários das mulheres nas empresas: misoginia e patriarcado”.
A perspectiva e a potencialização da equidade de gênero, a criação de políticas públicas para ampliação do espaço das mulheres na pesquisa, o fortalecimento da representatividade feminina nos espaços científicos e a criação de mecanismos de inclusão da pauta de gênero nas instâncias das universidades são algumas das ações apontadas por Cleusa capazes de reverter a invisibilidade a que as cientistas ainda estão submetidas.
Na UNILA, uma instituição ainda jovem, essa visibilidade das pesquisadoras também é uma preocupação. A pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação, Laura Fortes, diz que é importante haver o reconhecimento institucional e a adoção de políticas de inclusão. “A UNILA tem feito um esforço para fazer o levantamento de dados institucionais que possam embasar a proposição de políticas voltadas para o fortalecimento das mulheres no campo das ciências”, diz. Ela também cita como ações dessa natureza os editais de fomento à pesquisa que priorizam a atuação feminina.
Apesar dos obstáculos e dificuldades ainda encontrados, muitas estudantes e docentes se empenham em fazer da pesquisa uma ferramenta para questionar e discutir o papel da mulher. E em uma sociedade onde as vozes femininas são frequentemente silenciadas ou subestimadas, a pesquisa acadêmica assume um papel crucial na ampliação da representatividade e na divulgação das contribuições das mulheres em diversas áreas.
A mulher na política
Identificar as desigualdades de gênero na ocupação de cargos eletivos é o objetivo do TCC que está sendo desenvolvido pela estudante de Ciência Política e Sociologia Olinda Lewitzki Drutchiaki. A motivação para estudar esse tema veio da sua própria experiência de vida. “Eu nasci e cresci no campo e sempre observei a falta de participação política das mulheres e também essa ausência de reconhecimento e de oportunidades no contexto rural”, conta a aluna de 22 anos que vem da comunidade rural de Góes Artigas, distrito de Inácio Martins (PR).
O recorte da pesquisa de Olinda é identificar as dificuldades de mulheres camponesas, agricultoras, assentadas, indígenas e outras que vivem no meio rural para a ocupação de cargos políticos. Segundo a estudante, essa ausência de representatividade impacta diretamente na falta de políticas voltadas para a mulher do campo. “Eu tenho um sentimento de que a política institucional não é pensada para a mulher do campo. Então, eu acredito que é necessário políticas que representem e que consigam ser mais inclusivas. Faltam políticas que pensem, por exemplo, a alta taxa de mulheres do campo que não terminam o ensino médio e acabam se casando e engravidando muito jovens. Outro exemplo é a falta de emprego para mulheres, porque majoritariamente todos os empregos na área rural são para homens”, explicou.
Olinda acredita que a Universidade tem um papel importante ao promover projetos e ações relacionadas a questões de gênero. Mas também tem uma preocupação em fazer com que essas discussões não se limitem à academia e ultrapassem os muros da instituição para chegar às comunidades. Sua maior inspiração para refletir sobre isso é o trabalho de outra mulher: a egressa de Antropologia da UNILA Thaísa Lewitski, sua tia e fundadora da Casa da Cultura de Góes Artigas.
“A partir das vivências que a Thaísa teve na Universidade, ela tentou mobilizar as mulheres da comunidade, criando um coletivo que busca ser um espaço ativo de diálogo, um espaço político e também um espaço de lazer para as mulheres, especialmente para mulheres do campo que não têm esse acesso. É isso que me motiva: perceber o quanto essa iniciativa transformou a minha vida e a de outras mulheres”, completa.
A mulher na universidade
Juliana Helena Corrêa teve muitas oportunidades para estudar. Ela tem graduação em Pedagogia e em Publicidade e Propaganda, especialização em Políticas Públicas, está cursando sua terceira graduação, em Direito, e é aluna regular de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL). Porém, durante o trabalho como assistente em administração na Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da UNILA, Juliana se deparou com uma outra realidade: a de mulheres que desistiam da Universidade por conta da violência. O incômodo virou objeto de pesquisa no mestrado.
“O ambiente da universidade somado às características peculiares da UNILA me fizeram refletir sobre os impactos da violência contra as mulheres nesse espaço. É notório, sabido por todos, que vivemos uma epidemia de violência contra nós, mulheres. Porém, os números também demonstram a crescente onda violenta enfrentada pelas mulheres nos espaços públicos, ou seja, nos ambientes profissionais, políticos, religiosos, nas instituições de ensino e nas ruas. Ser mulher não é seguro ou confortável para nenhuma de nós e, tal fato apresenta-se de forma diferente para cada mulher. As mulheres pretas, pardas, indígenas, casadas ou divorciadas, com ou sem filhos, pobres, trans sofrem com o aumento da violência”, relatou Juliana, que é servidora na UNILA há 10 anos e atualmente trabalha no Departamento de Normas e Desenvolvimento Curricular da PROGRAD.
A pesquisa ainda tem um longo caminho para ser desenvolvida, mas ela já conseguiu perceber alguns padrões nos casos de mulheres vítimas de violência, como a dificuldade de serem ouvidas. Segundo a mestranda do ICAL, a primeira reação dos ouvintes – sejam eles amigos, profissionais de saúde ou agentes de segurança – é a de questionar sobre a real ocorrência das agressões. “Esse comportamento social provoca na vítima a chamada violência secundária, que é quase invisível, porém seus danos atingem significativamente o emocional da mulher por ter que repetir os fatos da violência para ser ouvida. Esse padrão é repetido na sociedade e também na UNILA. No entanto, a pesquisa também tem mostrado a resiliência das mulheres e a importância de uma rede de apoio para evitar a evasão”, pontuou. Na fase atual, Juliana está analisando os relatórios do Comitê Executivo pela Equidade de Gênero e Diversidade (CEEGED) da UNILA.
A mulher e a não maternidade
A iguaçuense Daiane Soares de Lima defendeu, na última segunda-feira (4), sua dissertação no Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina (ICAL). Graduada em História – América Latina, também pela UNILA, Daiane pesquisou um tema que ainda é cheio de estigmas na academia e fora dela: a não maternidade. O enfoque de sua pesquisa foi a vivência da não maternidade no filme “Frida” e no México. A escolha desse filme se deu pela identificação da estudante com a vida da artista, especialmente em relação às questões de saúde reprodutiva.
Frida Kahlo sofreu um acidente, aos 18 anos, que a deixou com várias sequelas de saúde, inclusive a impossibilidade de ter filhos. Já Daiane, aos 11 anos, foi diagnosticada com Síndrome de Turner, uma doença genética que causa infertilidade. “O maior problema não foi a frustração de não poder ser mãe biológica, o que deixou claro para mim que, na verdade, não desejava ter filhos, tendo apenas cogitado a hipótese por ser algo que foi colocado para mim como parte do ‘destino’ de toda mulher. Esse episódio de minha vida, além de mostrar que a maternidade é uma construção ideológica social, evidenciou a falta de preparo da sociedade para lidar com a situação. Às vezes, na tentativa de ‘consolar’, as pessoas colocam a experiência da maternidade como algo essencial na vida de toda mulher. E em outras ocasiões, o tema é transformado em um grande tabu, deixando o silêncio como uma marca indelével, sem dar à mulher a oportunidade de explorar suas próprias emoções e pensamentos sobre o assunto”, lembra Daiane, que acredita que a falta de compreensão e acolhimento se deve, em parte, à estrutura patriarcal e aos vestígios do processo de colonização presentes na sociedade.
Em sua análise, Daiane destaca a dificuldade de abordar a temática da não maternidade inclusive no ambiente universitário e entre movimentos feministas. “O fato é que os feminismos se rebelam contra a imposição, mas não se aprofundam no debate do que implica ser mãe. Ocorre, então, uma relação mal resolvida entre os feminismos e a maternidade, maternagem e não maternidade”, disse.
Para o futuro, a historiadora tem esperança de que as mulheres que optem por não ter filhos sejam compreendidas e respeitadas. Ela acredita que o caminho para a aceitação passa pelo debate aberto, pela ocupação de espaços e pelo resgate das experiências das mulheres que tentam desconstruir a ideia da maternidade compulsória. E é por isso que ela pretende continuar abordando esse assunto no doutorado. Desta vez, analisando como o cinema retrata La Llorona, um fantasma do folclore latino-americano originário da época pré-hispânica que, segundo a tradição oral, é a alma penada de uma mulher que chora e lamenta a perda dos filhos.
“Estou muito feliz por vincular as coisas que amo como história, cinema, feminismo e a Frida com a temática da não maternidade, que faz parte da minha vivência e, de alguma forma, de todas as mulheres. Escrever também é uma forma de lutar pela autonomia do nosso corpo-território e mostrar as opressões do sistema patriarcal, que mesmo que tente não vai conseguir nos silenciar”, destacou.
A mulher no cinema
Sob coordenação da professora Carla Rabelo Rodrigues, o projeto de pesquisa “Mulheres no Cinema do Peru” busca preencher lacunas históricas, mapeando e dando visibilidade às mulheres cineastas peruanas que foram negligenciadas pela narrativa oficial. De acordo com a docente, a principal motivação para iniciar a pesquisa foi verificar, nos livros de história do cinema peruano, que as mulheres eram pouco citadas. “As histórias das cineastas peruanas precisam ser contadas e seus filmes estudados. Para isso, tenho feito entrevistas com mulheres atuantes no cinema do Peru. Em dezembro e janeiro, estive em Lima e pude conversar com algumas delas pessoalmente”, contou. Essa lacuna, argumenta a pesquisadora, não apenas obscurece as contribuições significativas das mulheres para a indústria cinematográfica, mas também perpetua uma narrativa dominada pelo ponto de vista masculino.
Entre as cineastas peruanas que precisam ser mais conhecidas, Carla destaca Nora de Izcue. “Ela é a mais antiga cineasta viva e com produção contínua de direção de filmes, entre outras funções que exerceu no cinema. Alguns de seus filmes possuem personagens femininas bem potentes”, disse. A professora do curso de Cinema e Audiovisual da UNILA recomenda especialmente o filme Color de Mujer, disponível no canal da diretora no YouTube.
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Carla Rabelo organiza o encontro “8M na UNILA: debate sobre Cinema e Mulheres“, que será realizado a partir das 14h no Jardim Universitário (Sala C-207) e contará com mulheres trabalhadoras do audiovisual que desempenham diversas funções criativas. Carla enfatiza que o cinema é uma linguagem de poder e, historicamente, foram os homens que estiveram à frente, manobrando as dinâmicas do setor produtivo e liderando a produção científica sobre o campo. “Por isso, a discussão do 8 de março do curso de Cinema e Audiovisual é importante para que as mulheres possam apresentar seus processos criativos, suas reflexões e, principalmente, repensar essa lógica hegemônica capitalista-patriarcal, buscando mais igualdade e respeito no ecossistema audiovisual. Não à toa, há tantos movimentos feministas de mulheres no cinema, no mercado e no âmbito acadêmico”, cita. A docente observa esse movimento crescente de ativismo feminista no cinema acontecendo, inclusive, no Peru. Nos últimos anos, foram criados coletivos de mulheres no cinema, como o Nuca Cine – Asociación de directoras de cine del Perú, e eventos dedicados às vozes femininas, como o Festival Hecho por Mujeres. Movimentos de luta e resistência fundamentais para impulsionar a representatividade das mulheres no cinema peruano e latino-americano.
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